15 de dez. de 2007

NATAL DE DOM CAPPIO

Lá está o bispo, dom Luiz Flávio Cappio, no sertão da Bahia,
decidido em sua greve de fome contra a transposição do Rio São
Francisco.

O rio, que corta o coração do Brasil, leva o nome do santo padroeiro
da ecologia, devido ao seu amor à natureza, com a qual mantinha
relação de alteridade e empatia: Irmão Sol, Irmã Lua.

O que poucos notam é que o mentor de dom Cappio era, no século XIII,
um crítico radical dos primórdios do capitalismo. O feudalismo ruía
por sua inércia e os burgos, as futuras cidades, despontavam sob as
luzes da redescoberta de Aristóteles e os novos empreendimentos
mercantis.

Bernardone, pai de Francisco, rico proprietário de manufatura de
tecidos, importava da França as tinturas para colorir seu produto. Sua
admiração pela metrópole levou-o a batizar o filho em homenagem à
França – Francesco.

A miséria, até então, campeava na Europa em decorrência de guerras e
da peste. O mercantilismo gerou, pela primeira vez, relações de
trabalho promotoras de exclusão social. Francisco solidarizou-se com
as vítimas da nascente manufatura. Ao despir-se na praça de Assis,todos
entenderam o gesto para além de simples ato de despojamento. As roupas
produzidas pelo pai estavam conspurcadas pela tecnologia que condenava
artesãos à perda de seu ofício e, portanto, à miséria.

Hoje, o franciscano dom Cappio se posiciona ao lado das vítimas da
transposição das águas do São Francisco. O PT, historicamente, era
contrário ao projeto. E também contra a CPMF. Uma vez governo, mudou,
como aliás mudou em tantas outras coisas. Mudou para não efetivar as
mudanças prometidas, como a agrária. Mudou para se desfigurar como
partido dos pobres e da ética. Mudou para ficar mais parecido com
seus adversários políticos.

Em Sobradinho (BA), na capela consagrada ao santo que dá nome ao
rio, o bispo faz seu gesto solitário, embora alvo, no Brasil e no
exterior, de muitos apoios solidários. Sua primeira greve de fome,
por 11 dias, foi em 2005. Dom Cappio recusou alimentos até que o
governo prometesse rediscutir o projeto e promover a revitalização do
rio. Segundo o bispo, o Planalto não honrou o compromisso.

A obra de transposição está orçada em R$ 5 bilhões. Cornucópia na
qual estão de olho as grandes empreiteiras e o agronegócio. Dom
Cappio desconfia de que a transposição beneficiará, não os pobres da
região, que vivem da pesca e do cultivo familiar, e sim o grande
capital.

Quem já viu governo fazer obra de vulto para beneficiar pobre? Nem
sequer o governo Lula investiu suficientemente no programa de
construção de 1 milhão de cisternas de captação de água da chuva, que
poria fim às agruras da seca no semi-árido. Apenas 25% das cisternas
foram construídas, assim mesmo graças ao apoio da iniciativa privada.
Cidades sem suficiente saneamento são beneficiadas por viadutos para
o conforto de quem transita em carros...

Quem terá acesso à água transposta? A seca ou a cerca? Não faz
sentido esse projeto numa região em que ainda predomina o latifúndio e
cuja população, cerca de 12 milhões pessoas, não tem acesso à
propriedade da terra. No projeto não são incluídas as 34 comunidades
indígenas e os 153 quilombolas encontrados em sua área de alcance.

O próprio organismo que responde pelas bacias hidrográficas, o
Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, está contra o
projeto, que ignora as estruturas sociais arcaicas da região – o que
significa, na prática, fortalecê-las.

O que dom Cappio reivindica é simples e democrático: que o governo
debata o projeto com a sociedade, sobretudo com os ribeirinhos do São
Francisco. A obra terá profundo impacto em toda a extensão
territorial do país e, sobretudo, reflexos ambientais e sociais.

Dom Cappio tem fome de justiça, uma bem-aventurança, segundo Jesus
no Sermão da Montanha. Seu Natal é o da manjedoura, lá onde a família
de Maria e José, sem-teto e sem-terra, faz nascer a esperança de que a
população da bacia do São Francisco não venha, em futuro próximo, ser
conhecida também como sem-rio.

Frei Betto - escritor, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco),
entre outros livros.