13 de mai. de 2008

Eliminando a Idéia de Raça

O tema “raça e racismo” continua sendo um dos mais inadequadamente abordados por escolas, universidades, governos, religiões, meios de comunicação e até movimentos sociais, o que, infelizmente, colabora para que o preconceito se perpetue.

Para que possamos mudar este quadro, é importante que procuremos entender e divulgar o fato cientificamente comprovado de que não existem raças humanas, pois ainda continuamos ouvindo frequentemente que existem quatro raças ou que o povo brasileiro é constituído por uma mistura de raças e outros erros deste tipo...

Então, compartilho com vocês (link abaixo) um texto acadêmico, escrito pelo antropólogo e professor da USP Kabengele Munanga, que aborda a questão de forma bastante clara. Alguns pontos:

- Todos os seres humanos formam uma única espécie. Cientificamente falando, não existem raças humanas. O conceito de raça foi forjado por “cientistas” e “religiosos” equivocados ou mal-intencionados e serviu para tentar justificar as relações de dominação entre classes e povos, a fim de legitimar os interesses de empreendimentos imperialistas e escravocratas. Hoje, a palavra raça só é aceitável se usada no sentido cultural.

- O estudo do genoma humano já provou que não existem variações genéticas suficientes para sustentar a idéia de que os indivíduos de distintas cores de pele fariam parte de “raças diferentes”.

- As diferenças de cor de pele que vemos entre as pessoas resultam da exposição dos primeiros humanos às condições climáticas e geográficas das diversas regiões do planeta. Por exemplo: nas regiões onde o sol era mais forte, nossos ancestrais desenvolveram características que lhes permitissem suportá-lo. O mesmo se deu nas regiões frias, onde a pele clara se destinava ao aproveitamento do sol escasso. Depois, com o abrandamento das condições climáticas e a ocorrência dos fluxos migratórios, tudo isso se mesclou e pessoas de cores diferentes passaram a habitar as mesmas regiões.

- O conceito de etnia é usado pela Antropologia para se referir às diferenças culturais entre grupos humanos. Sendo assim, entre pessoas de pele branca existem diferentes etnias, assim como entre pessoas de qualquer outra cor de pele. Então, é errado falar em etnia negra, etnia branca, etc. Na África, por exemplo, existem diversos grupos étnicos (com hábitos e estrutura lingüística próprios), embora sejam todos negros.


É fundamental que tenhamos claros estes conceitos para que, sempre que possível, ajudemos a eliminar esta idéia de raça que já causou e ainda causa tantos malefícios.


Leia o texto:

http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/09abordagem.pdf

5 de mai. de 2008

Prato Cheio de Compaixão

Por Cristina Sales*

Faz pouco mais de quinze anos que me tornei completamente vegetariana. Abandonei o consumo de carne vermelha em 1992, após um breve período de abstenção não-intencional. Ao tentar voltar à “alimentação” carnívora, percebi os rapidamente seus malefícios, pois após um mês sem as toxinas da carne, meu corpo, reagiu fortemente contra o retorno aos meus antigos hábitos.


Na ocasião, eu começava a me interessar pela filosofia hindu e a leitura de livros que falavam sobre a importância de abandonar o consumo de carne, aliada à experiência negativa citada anteriormente, surtiu um efeito imediato. Ou seja, informação e experiência mostraram ser a combinação perfeita para gerar mudanças. Era o que faltava para que eu abandonasse também qualquer outro tipo de comida originada da morte de animais.


Há muitos motivos pelos quais eu acredito que uma pessoa deva deixar de comer carne. Poderia falar dos benefícios para o corpo e a mente, que ficam livres das toxinas – como a cadaverina, originada pela degradação das proteínas das carnes; do grave problema ecológico causado pela criação de gado e de outros animais em larga escala etc. Mas, hoje, para mim, o ponto mais importante é o respeito ao ideal da não-violência, que difundido pelo admirável Mahatma Gandhi.


Com a atual capacidade de produção de alimentos vegetais, alcançada graças ao uso de novas tecnologias agrícolas, acredito firmemente que não há nenhuma necessidade de recorrermos à carne, causando sofrimento a outros seres sensíveis para satisfazermos nossa necessidade de alimento. Uma infinidade de frutas, legumes, verduras e grãos cheios de vitaminas e proteínas está à nossa disposição. E, ao contrário dos animais, os vegetais não sofrem nem tentam fugir ao serem capturados.


Mas quando falo em violência, não me refiro só aos animais vitimados. Estamos cometendo outro tipo de violência que nem sempre é percebido. Vivemos pela primeira vez na história um momento em que é totalmente possível acabar com a fome no planeta. Porém, preferimos usar as plantações de soja, milho e outros grãos para alimentar o gado que acabará no prato dos poucos que podem pagar pela carne, que empregar as colheitas para saciar a fome de milhões de pessoas.


É tanto por compaixão para com estas pessoas, quanto para com os milhões de animais que têm seu sangue derramado em nome dos vícios do paladar que acredito que devemos abandonar definitivamente este hábito que nos degrada e desumaniza.


*Comunicadora social e escritora

Este artigo foi escrito originalmente para

o informativo da ONG espanhola Anima Naturalis

26 de abr. de 2008

Brasil - Escolhe a escola

Não deixa a tua cozinheira, senhora do sabor e da arte do saber - o que convém à mesa -, perdurar como incidadã analfabeta. Escolhe a escola.

Sabes aquele garoto junto ao sinal vermelho que te cessa o trânsito da vida? Aquele acrobata amador que faz bailar sobre a cabeça meia-dúzia de bolas ou garrafas? Não dê a ele esmolas, abra-lhe horizontes, aplaca-lhe a fome de humanidade. Escolhe a escola.

Se empregas um jovem de cujo trabalho recebes teu bem-estar, não o deixes absorvido a ponto de impedi-lo de ler, aprimorar sua cultura e seu preparo intelectual. Escolhe a escola.

Não te entregues à ociosidade inútil de tua aposentadoria, teu tempo absorvido por programas televisivos de mero entretenimento, os dias a escorrer céleres a apressar-te a velhice, como se as folhas despidas no outono não mais retornassem no vigor da primavera. Escolhe a escola.

Se enfrentas a atroz dúvida de como presentear os mais jovens, sem a certeza de que haverás de agradá-los, invista no futuro deles, não dês embrulhos, e sim matrículas. Escolhe a escola.

Evita que a tua mente se entorpeça por falta de uso ou uso rotineiro de tuas ocupações habituais. Amplia a tua visão, aprende um idioma ou a tocar um instrumento musical, matricula-te no curso de trabalhos manuais ou na oficina de cerâmica. Escolhe a escola.

Há por toda parte muitos cursos que ultrapassam os currículos convencionais, de culinária e bordado, ikebana e yoga, natação e tai chi chuan; cursos por internet e TV, correspondência e manuais de autodidatismo. Escolhe a escola.

Se encontras um adolescente no meio rural, entregue precocemente à labuta diária, sem outra cultura senão a que deriva de seus afazeres e da convivência com os guardiães da memória local, ajuda-o a aprender que o mundo é mais vasto que a sua aldeia. Escolhe a escola.

Todos temos algo a aprender e ensinar. Não guardes para ti os teus conhecimentos, as tuas habilidades, tantas informações a adularem tua auto-estima. Socializa-os, divulga-os, partilha com o próximo o teu saber. Escolhe a escola.

Se tens tempo livre e podes trabalhar como voluntário, animando crianças em seus deveres escolares, treinando jovens em suas habilidades profissionais, entretendo idosos com as tuas histórias e leituras, não deixa enterrados os teus talentos. Escolhe a escola.

Se freqüentas ou tens contato com uma escola, procura fazer com que ela dialogue com outra escola, troque experiências e conhecimentos, intercambie alunos e professores, tornando-se escolas irmãs. Tece entre elas uma rede solidária. Escolhe a escola.

Saibas que todas as crianças e todos os jovens envolvidos com criminalidade estão fora da escola; e muitos são trabalhadores precoces, desprovidos de infância e juventude, direitos trabalhistas e salário justo. A favor de uma nação saudável, de cidadania plena, escolhe a escola.

Ao escolher a escola, luta para que todos tenham acesso a ela, e que o ensino seja repartido gratuitamente como os raios solares. Empenha-te para que a escola seja de qualidade, os professores bem preparados e remunerados, as instalações adequadas e limpas, os recursos fartos, os equipamentos atualizados. Mas escolhe a escola.

Não se faz cidadania sem escolaridade, nem democracia sem cultura centrada nos direitos humanos e na prática intransigente da justiça. Não se aprimora o humano sem ética e valores infinitos enraizados na subjetividade. Escolhe a escola.

A escola nem sempre se resume a uma construção retalhada em salas de aulas, preenchida por alunos devidamente matriculados. Faz-se escola sob a tenda indígena ou a lona do assentamento, no quintal de casa ou na sala de uma igreja, na garagem ao lado ou no cinema cedido às aulas matinais. Escolhe a escola.

Doenças endêmicas, como a dengue ou a febre amarela, a leishmaniose ou a xistosomose, seriam facilmente evitadas se as pessoas tivessem suficiente educação para cuidar da higiene de si e do ambiente em que vivem, dos artefatos que manipulam e dos alimentos que consomem. Escolhe a escola.

E ao escolher a escola, não permitas que em torno delas os políticos inflem seus discursos demagógicos. Exige deles - nossos servidores públicos - compromissos efetivos e assinados, de modo que a educação, de qualidade e para todos, seja considerada prioridade neste país. Ao votar, escolhe candidatos comprovadamente empenhados em transformar o Brasil numa imensa escola voltada ao fortalecimento da cidadania e ao aprimoramento da democracia.


Frei Betto - Frei dominicano. Escritor

[Autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de "Essa escola chamada vida" (Ática), entre outros livros]

Fonte: www.adital.org.br


21 de abr. de 2008

O Perigo do Crescimento Eterno

Com o lançamento de "Ecoeconomia - Uma Nova Abordagem", Hugo Penteado deu à discussão ambiental no Brasil um novo patamar ao basear toda sua argumentação não nas costumeiras bandeiras desfraldadas pelos verdes, mas sim ao dirigir sua crítica ao modelo de desenvolvimento dos grandes países: "Não há crescimento econômico sem total desfiguração dos ecossistemas e sem estar colocando toda a vida na Terra, inclusive a dos homens, em total perigo".

O autor, economista-chefe do ABN AMRO Real, afirma que o grande problema se encontra na obsessão do sistema em buscar crescer sem parar - mesmo que o combustível venha de fontes finitas de abastecimento, como a água. Ele alerta: "O risco econômico está na necessidade de crescer quantitativamente a qualquer custo para garantir a saúde financeira de três sistemas principais: o mercado financeiro, oprevidenciário e o fiscal. Dado que o crescimento econômico é impossível do ponto de vista do espaço físico e ambiental, esses sistemas estão fadados à falência. O que vamos ver nos próximos anos é uma enorme crise econômica que pode acontecer muito antes da crise ecológica".

Desde o lançamento do livro, Penteado tem dado palestras em todo o País, aceitando convites vindos de entidades de classe e universidades. A seguir os principais trechos de sua entrevista exclusiva.

Gazeta Mercantil - Qual a explicação do surgimento da Ecoeconomia ou Economia Ecológica?
Hugo Penteado - Ao contrário do que muitos pensam, os principais motivos de ela ter surgido não foi o buraco da camada de Ozônio e sim os fracassos nas áreas social e ambiental, apesar da enorme expansão econômica e do desenvolvimento dos últimos anos. Hoje, os níveis de uso dos recursos finitos da Terra são alarmantes. Recursos finitos leiam-se recursos naturais como água e solo ou o equilíbrio climático-ecológico entre as espécies vivas, sem o qual não sobreviveremos na Terra. Lester Brown(*) batizou esse fenômeno de aceleração histórica: em um ano somos capazes de produzir mais bens e serviços que desde o início da humanidade até a Segunda Guerra Mundial.

O Clube de Roma já alertava para esse fenômeno: o sistema econômico está sendo submetido a um crescimento exponencial. Alguém ainda vai ganhar um Prêmio Nobel ao provar que o território americano tem um tamanho constante de 9,3 milhões de km², sobre o qual é impossível adicionar um fluxo de PIB de milhões de carros, casas e coisas de forma crescente.

Gazeta Mercantil - O crescimento é impossível por causa do tamanho do território?
Hugo Penteado - A escola Neoclássica resolveu o problema do crescimento infinito pelos ganhos de eficiência e da substituição infinita dos materiais da natureza pelo capital, mas Nicholas Georgescu-Roegen avisa que não há outros fatores materiais que não os da natureza. Além dessa enorme crítica, a escola Neoclássica nunca resolveu o problema do espaço físico finito em superfície. Isso mostra um profundo desconhecimento da Física. Mas não importa. Para se ter uma idéia, se os Estados Unidos crescerem o que Wall Street demanda que ele cresça, em 10 anos ele irá adicionar 9 economias iguais ao Brasil de hoje e a distância entre os ricos e pobres será maior do que nunca. Crescer 9 Brasis num território constante de 9,3 milhões de km² é impossível.

Por isso, estamos vivendo uma crise de crescimento nos países ricos, com a qual todos irão sofrer. Além desse crescimento não gerar empregos compatíveis com o crescimento populacional absoluto, ele não gera empregos permanentes nem fluxos permanentes. Esse erro teórico de ignorar o espaço físico finito e manter um crescimento suicida colocou as espécies animais e vegetais desse planeta na maior rota de extinção em 65 milhões de anos, de forma totalmente antropogênica.

Stephen Jay Gould dizia que não se trata de um processo de extinção natural de milhões de anos e sim de uma larga destruição de habitats e de alterações no equilíbrio ecológico, além da caça desenfreada. Hoje é aterrador perceber o que a espécie humana está fazendo contra seus pares e essa é a maior prova que não há ambiente para essa obsessão maníaca.

Gazeta Mercantil - A extinção da biodiversidade na Terra é um problema econômico?
Hugo Penteado - Sim, está ligado ao nosso sistema econômico, que pretende ampliar suas estruturas exponencialmente dentro de um espaço finito como a Terra. O ser humano aparentemente menospreza todas as formas de vida que não o seu próprio umbigo. Nós não nos vemos mais como uma espécie animal imortal e sim como indivíduos. Foi com essa visão individualista que Keynes proferiu a sua famosa frase: "No longo prazo estaremos todos mortos". Mas como uma espécie animal jamais estará morta, o que vamos deixar então para as gerações futuras?

Ora, o crescimento econômico é um crime num espaço finito cujo equilíbrio ecológico garante que a energia solar faça nossos corações baterem e garante que o oxigênio seja produzido nos mares e oceanos para todos respirarem. Veja o que está acontecendo nos oceanos: 90% das populações dos grandes predadores foram extintas; os corais, lares de grande parte das espécies oceânicas, estão agonizando; as costas dos mares onde vivem e se reproduzem peixes estão devastadas; 75% dos rios foram alterados; os manguezais destruídos a uma alta velocidade.

Não há crescimento econômico sem total desfiguração dos ecossistemas e sem estar colocando toda a vida na Terra, inclusive a dos homens, em total perigo. Fala-se da destruição da Amazônia, mas ninguém comenta que 99% das florestas dos Estados Unidos e da Europa foram derrubadas e que para atender à demanda desses países ricos, 75% das florestas tropicais já se foram. Apesar disso, antes do perigo ecológico, há o perigo econômico.

Gazeta Mercantil - Como assim? Essa não é uma preocupação meramente ecológica?
Hugo Penteado - De jeito nenhum. É impossível separar a economia da ecologia e isso só foi possível através de uma série de mitos e esses mitos impregnaram fortemente as teorias econômicas que influenciam as decisões dos governos até hoje. O risco econômico está na necessidade de crescer quantitativamente a qualquer custo para garantir a saúde financeira de três sistemas principais: o mercado financeiro, o previdenciário e o fiscal. Dado que o crescimento econômico é impossível do ponto de vista do espaço físico e ambiental, esses sistemas estão fadados à falência.

O que vamos ver nos próximos anos é uma enorme crise econômica que pode acontecer muito antes da crise ecológica. Os atrasos ecológicos, principalmente na agricultura, são muito grandes, mas isso pode ser uma chance para realinharmos nosso sistema para uma rota de equilíbrio, onde valores humanos, sociais e ambientais passem a fazer parte da equação.

Gazeta Mercantil - O crescimento populacional é um problema ecológico ou econômico?
Hugo Penteado - Ambos. Eu não acredito que o crescimento populacional possa ser ignorado para a questão do crescimento. Na equação de Solow ele é menosprezado dando espaço ao avanço tecnológico, mas não acredito nisso, é mais um erro teórico. Os países ricos estão preocupadíssimos com o baixo crescimento populacional, pois as populações no mundo todo estão envelhecendo e os custos com a previdência estão explodindo. As enormes populações da China e da Índia mostram erradamente que podemos ter enormes populações sem o menor problema, mas essa é uma análise superficial, pois grande parte dessas populações vive na miséria.

De qualquer forma, o mito de espaço infinito para tudo e todos fez com que a gente não se preocupasse com o crescimento absoluto e olhasse apenas para o crescimento percentual da população, que despencou nos últimos 30 anos. Os demógrafos falam que a população vai estabilizar algum dia e ao mesmo tempo toda a mídia e o governo estimulam um baby boom. Sem crescimento populacional o sistema de previdência de repartição simples vai falir; jamais deveria ter sido implementado um sistema no mundo que não fosse o de capitalização.

A dependência financeira de uma geração de pessoas em relação a outra conta com o mito de crescer sempre e cada vez mais, tanto do ponto de vista populacional quanto material. Lógico que isso não vai acontecer; lembre-se que a água e o solo são recursos renováveis, porém finitos, que estão sendo duramente degradados. Só 10% da água doce no mundo não está poluída hoje. Sem esse crescimento, o sistema de repartição simples na previdência não tem equilíbrio atuarial e já está sendo submetido a déficits financeiros crescentes.

Gazeta Mercantil - Mas as taxas de fertilidade e de natalidade estão despencando em todos os lugares; mesmo assim devemos nos preocupar com população?
Hugo Penteado - Primeiro, essa queda nas taxas é uma restrição econômica e financeira, quando olhamos o sistema previdenciário, e nenhum governo quer isso. Segundo, Malthus não errou porque relativizou a oferta de alimentos ao número de bocas; seu maior erro foi não enxergar nenhum problema no crescimento populacional, desde que a população crescesse lentamente. Na verdade, hoje estamos adicionando quase 80 milhões de pessoas por ano na Terra, o mesmo ritmo de crescimento absoluto de 30 anos atrás.

Um mito fez os demógrafos darem ênfase aos números relativos e não aos absolutos. Esses mitos fizeram os economistas olharem também para o crescimento relativo dos fluxos e não os absolutos. Ninguém se importa com o aumento gigantesco de casas e veículos em termos absolutos, apenas com a taxa de crescimento. Focamos em fluxos e em crescimento relativo, as variáveis econômicas principais são fluxos. Isso é fruto do mito que está colocando a humanidade numa rota suicida, tanto do ponto de vista ecológico quanto econômico.

Gazeta Mercantil - Mas isso tudo é muito óbvio. Então o que estamos fazendo para mudar as atuais tendências econômicas?
Hugo Penteado - Se olharmos a corrente política tradicional, nada; e os problemas estão se amontoando. O modelo de crescer a qualquer custo nunca esteve tão forte e é uma pregação messiânica diária. A frase preferida de todos é temos que crescer, embora isso não gere empregos de forma permanente, não seja sustentável para as pessoas e com as condições do meio ambiente e da biosfera. Essa obsessão maníaca por crescimento está disseminada, é tratada de forma totalmente acrítica por todos.

Quando abrimos fronteiras agrícolas aqui no Brasil, deixamos de lembrar que somos o único País com fronteira em expansão no mundo hoje. Os economistas tradicionais comemoram, mas os economistas ecológicos enxergam nisso uma atividade que está importando para dentro do Brasil a insustentabilidade ambiental de países ricos e de países populosos como a China, cujo déficit de alimentos não só já existe, como vai aumentar. O USDA, departamento agrícola americano, prevê déficit de produção de alimentos nos Estados Unidos com a exaustão do aqüífero fóssil Ogallala e na China com a perda de solo fértil. Isso tudo para alimentar uma enorme população que ainda cresce 14 milhões por ano.

Esse déficit vai transformar a Amazônia numa enorme monocultura, cujo déficit de empregos da última década no setor agrícola brasileiro alcança milhões de trabalhadores. São atividades insustentáveis e que expulsam o ser humano, para dizer o mínimo.

Mas não importa: há uma máxima em Filosofia pela qual quando nossos interesses estão em jogo ficamos completamente cegos. Não estamos na verdade vivendo uma crise ambiental e econômica e sim uma enorme crise de valores. Não há tempo para discutir mais essa crise, nem há mais tempo para fazer coisas erradas, mas infelizmente, apesar da falta de tempo, continuamos presos na obsessão pelo crescimento. Basta ver que as únicas políticas econômicas que importam e que regem o mundo são as de demanda (monetária e fiscal).

Para as teorias econômicas tradicionais podemos dizer que a produção de bens e serviços - mesmo que finito - não sofre nenhuma restrição e praticamente brota do nada. É com essa visão distorcida do mundo que estão sendo tomadas decisões que influenciam a vida de todos, decisões que estão nos levando em primeiro lugar para uma falência econômica e em segundo lugar para um risco ecológico do qual ainda não sabemos o tamanho.

Eduardo Burato

Fonte: Gazeta Mercantil - - 05/03/04

7 de abr. de 2008

Heróis pela Democracia

Está no ar desde fevereiro uma das melhores campanhas dos últimos tempos. Criada para o TSE pela agência W/Brasil, a campanha Heróis pela Democracia incentiva o cadastramento dos eleitores para o exercício do direito ao voto, lembrando daqueles que lutaram por sua garantia.

Confira no You Tube:

http://br.youtube.com/watch?v=PS3cvIlNJDM

14 de mar. de 2008

Avaaz faz campanha por biocombustíveis sustentáveis

Todo dia 820 milhões de pessoas passam fome enquanto os preços dos alimentos aumentam pelo mundo todo – do México ao Marrocos. O que isso tem a ver com os biocombustíveis? A terra que deveria produzir alimentos para seres humanos está sendo substituída para produzir comida para automóveis.1

Os biocombustíveis deveriam ser uma alternativa para o consumo do petróleo, recurso não renovável, poluidor e motivador de conflitos sociais pelo mundo. Porém temos que ter cuidado para que a solução não se torne o problema. Com os fortes incentivos governamentais, o crescimento desenfreado da produção de biocombustíveis está trazendo graves conseqüências sociais e ambientais como o desmatamento, a monocultura, grande emissão de carbono e o aumento do preço dos alimentos.2

Nem todos os biocombustíveis são ruins, a cana de açúcar brasileira por exemplo é mais eficiente que o milho dos EUA. Por isso precisamos de padrões globais para garantir que eles sejam produzidos de uma maneira correta sem comprometer a segurança alimentar da população, sem aumentar a desigualdade social, nem contribuir para o desmatamento.

Com tanta desigualdade no mundo a troca pode ser cruel: o tanque de um veículo grande utilitário consome uma quantidade de milho suficiente para alimentar uma pessoa por um ano. Mas os biocombustíveis não são nem deveriam ser o vilão da história, o problema são as metas astronômicas dos EUA e União Européia3 que não diferencia as práticas boas das ruins. Como resultado a monocultura se alastra pelo Brasil, florestas são desmatadas na Indonésia e as reservas de grãos pelo mundo estão baixando de forma alarmante. Os países ricos colocam sua etiqueta "ecológica" ás custas do prejuízo ambiental e social do cone sul, e as multinacinoais continuam a encher os bolsos.

Precisamos de padrões internacionais de produção de biocombustíveis imediatamente. Esse final de semana nossos representantes estarão na reunião do G20 em Chiba no Japão discutindo a soluções para o aquecimento global e essa é a nossa oportunidade de divulgar essa campanha e fazê-la ouvida pelos nossos governantes.

A conscientização sobre esse problema não vai acabar com a fome do mundo nem parar o aquecimento global, mas é um primeiro passo essencial. Agora é a hora de confrontarmos as soluções falsas de curto prazo e demandar soluções verdadeiras e sustentáveis. Podemos mostrar para nossos governantes que queremos fazer a coisa da forma correta, não da maneira mais fácil. Chegou a hora de colocarmos as pessoas e o planeta acima das políticas e do lucro que direcionam os acordos internacionais e nos fazer ouvir pelos nossos representantes.

Participe da campanha por biocombustíveis sustentáveis, clique no link para enviar uma mensagem para o representante do seu páis, pedindo uma regulamentação global para os biocombustíveis:

http://www.avaaz.org/po/biofuel_standards_now/12.php?cl=61393785

Fonte: www.avaaz.org


Referências:

[1] Agência Brasil. "Relatório da FAO aponta riscos à segurança alimentar com produção de biocombustíveis" http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/05/01/materia.2007-05-01.6505917455/view

[2] O Globo Online. "Os biocombustíveis e a segurança alimentar. http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2008/02/16/os_biocombustiveis_a_seguranca_alimentar-425689890.asp

[3] Inter Press Service. "Críticas aos subsídios europeus para biocombustíveis."

4 de mar. de 2008

Violência contra a mulher é vergonha mundial

Viver novas relações de gênero para transformar o mundo

Marcelo Barros *

Quanto mais a humanidade sente a necessidade de um mundo mais justo, mais se dá conta de que enquanto não se instaurar uma relação de igualdade entre homem e mulher, nunca teremos paz e justiça. A ONU adverte que, em nenhum país do mundo, a relação entre homem e mulher é igualitária e sem violência. Existem países como o Kwait nos quais a mulher ainda não tem direito de dirigir carro, nem votar nas eleições. Pior ainda, na China, o governo fecha os olhos para o costume de matar a criança recém-nascida, se esta for menina. Entretanto, mesmo no Ocidente e em partes do mundo nas quais a mulher já goza de direitos civis iguais ao homem, na realidade a violência continua ameaçando-a no próprio lar e na relação com o companheiro. As cifras são misteriosas e secretas, mas calcula-se que, anualmente, 200 milhões de mulheres são vítimas de violência, a maioria delas em sua própria casa. E muitas delas, vítimas de morte.

Há poucos dias, a imprensa internacional descobriu que mulheres asiáticas continuam sendo seqüestradas para ser obrigadas a se prostituir nos centros de lazer e repouso dos soldados norte-americanos no Iraque, no Afeganistão e em outros lugares da Ásia. Para evitar o risco da Aids e de doenças, esta rede de prostituição invade as aldeias e rouba principalmente meninas de 12 a 17 anos.

Em dezembro de 2007, na Arábia Saudita, uma mulher foi seqüestrada por seis homens. Eles a violentaram, a estruparam e a abandonaram para morrer em meio a uma poça de sangue. O marido a descobriu e a resgatou. O casal foi à polícia e abriu um processo contra os seis homens conhecidos e importantes na aldeia. No julgamento, o juiz lavrou uma sentença de censura contra os homens, mas sem ordem de prisão nem qualquer outro castigo. E a mulher foi levada à mesquita e submetida à lei islâmica para as adúlteras. Quarenta golpes no corpo nu. Os jurados e o juiz partiram do princípio de que ela poderia ter provocado e por isso merecia o castigo das mulheres adúlteras (Cf. revista Solidarietà, fev 1008).

Não sei as cifras atuais de quantas vítimas as guerras que ferem o nosso planeta fazem anualmente, mas, sem dúvida, este indicie altíssimo de mulheres violentadas e assassinadas revela uma guerra cotidiana tanto mais perigosa e terrível porque é oculta e disfarçada. É uma tragédia que ocorre tanto em países pobres da África, como nos Estados Unidos e na Europa. Acontece cotidianamente em lares pobres, como nos meios mais ricos onde, de vez em quando, intelectuais e artistas são denunciados de violência contra a companheira. Quem convive com os mais pobres sabe que os movimentos populares organizados insistem em novas relações e, em grande parte, o conseguem, mas nos bairros de periferia do Brasil, as famílias são organizadas por mulheres. Os homens ou somente passam transitoriamente ou na maioria dos casos são mais fonte de problemas como, por exemplo, o alcoolismo, do que uma ajuda à sobrevivência.

A ONU está tão impressionada com a realidade de insegurança das mulheres pobres e o índice altíssimo de violência contra a mulher, em geral, que instituiu o 24 de novembro como "dia internacional contra a violência na relação de gênero". No Brasil e em outros países é mais popular o dia internacional da mulher, celebrado no 08 de março, dia que, segundo a tradição, recorda o martírio de um grupo de mulheres na repressão a uma greve em Chicago, no século XIX.

Dedicar um dia especial à mulher não muda o caráter patriarcal e machista da sociedade. De certo modo, a sociedade sempre permitiu que houvesse um dia das mulheres, para que, no dia seguinte tudo voltasse ao normal. Em regiões do norte da Espanha, no 05 de fevereiro, festa de Santa Águeda, as mulheres tomavam o poder em casa e nas ruas, desfilando com danças e cânticos. Na Grécia, no dia 08 de janeiro, as mulheres acorriam à casa da mais velha parteira, a "babo" e vestidas com as suas mais belas roupas. Embaladas por músicas, confeccionavam um sexo masculino com legumes ou embutidos e, travestidas de homens, iam para as ruas onde perseguiam e maltratavam o sexo oposto. Para terminar, um banquete celebrava as concepções e partos do novo ano. Em outras regiões, as mulheres preparavam alimentos cujos restos eram usados numa grande batalha de comida na Quarta-feira de Cinzas.

Nos últimos tempos, as comemorações do dia internacional da mulher assumiram um aspecto menos folclórico e mais educador da consciência de homens e mulheres. No Brasil, o governo Lula instaurou a Secretaria Especial de Promoção da Mulher, com estatuto de ministério e esta secretaria organizou, após ampla consulta à sociedade civil o Plano Nacional de Promoção da Mulher que precisa ser conhecido e aplicado em todos os rincões do país.

As Igrejas cristãs têm uma dívida moral com a mulher. As mais antigas nem aceitam ainda dar à mulher o pleno acesso aos ministérios eclesiais. A maioria das igrejas evangélicas deram este passo e, hoje, as mulheres podem ser pastoras, mas isso não mudou ainda a estrutura patriarcal dos ministérios, ainda pensados para homens. Os Evangelhos contam que Jesus ressuscitado apareceu em primeiro lugar às mulheres, suas discípulas e fez delas apóstolas dos apóstolos. É um sinal de que a promoção da mulher é um sinal pascal importante. De fato, o mundo precisa desta dimensão feminina que humanizará as relações e transformará a sociedade. Não é por isso um exagero a afirmação do teólogo ortodoxo Paul Evdokimov: "A mulher salvará o mundo".


* Monge beneditino, teólogo e escritor. Tem 30 livros publicados.

Fonte: www.adital.com.br

2 de fev. de 2008

O Império, o pensar crítico e o desejo

Jung Mo Sung *

No artigo anterior (Há alternativas? O Império e o pensar crítico), eu defendi a tese de que o desenvolvimento e a "difusão" da capacidade de um pensamento crítico e complexo é uma tarefa fundamental na luta contra o Império que se apresenta como "sem alternativa". No fundo, esse é o trabalho de todos e todas que de alguma forma estão envolvidas com processo de "educação libertadora".

A capacidade de pensar criticamente é um instrumento necessário para as lutas populares, mas é suficiente? Não. Há uma distância ou um abismo a ser transposto entre o conhecimento e a ação transformadora. Marx já tinha levantado esta questão nas suas famosas teses contra Feuerbach, especialmente quando ele disse que "os filósofos interpretaram o mundo, mas o que é preciso é transformá-lo". Ou como disse Kojéve, o conhecimento mantém o ser humano em quietude passiva, o que o torna inquieto e o leva à ação é o desejo. Muitas das nossas experiências de educação popular ou cursos de conscientização sobre a realidade nos mostram que o conhecimento por si não move as pessoas a assumirem a luta pela transformação. É preciso despertar o desejo pela mudança.

Este tema do desejo é fundamental também para compreendermos a principal forma de dominação do atual Império global. Os impérios anteriores se caracterizavam pela expansão e domínio de um país poderoso (por ex., Grã-Bretanha) sobre outros povos através da força militar. O poder militar era fundamental na conquista e na manutenção do poder imperial. O Império atual se caracteriza, não pela expansão do poder de um único país, mas pela expansão de um sistema econômico, o capitalista, sobre todas as partes do mundo e todos os aspectos da vida. A lógica do mercado e o interesse absoluto da acumulação do capital se impõe sobre todos aspectos e níveis da vida. É claro que o poderio militar dos Estados Unidos é um fator importante na manutenção da ordem imperial global, mas não é o único e nem o mais importante. Um dos instrumentos mais importantes dessa dominação é a sedução. Através do domínio cultural, o sistema capitalista está conseguindo cooptar os desejos das multidões de todos os povos, desde os pobres de Bangladesh que se orgulham e ficam deslumbrados diante dos novos e luxuosos Shopping Centers, passando por chineses (ainda comunistas?) que desejam o que desejam os ricos dos países ocidentais e por coisas semelhantes na América Latina e na África.

Quando queremos passar do conhecimento passivo para uma inquietação que leva à ação transformadora, o tema do desejo é essencial. Há pessoas que não conseguem sair do imobilismo, mesmo após a "conscientização", porque simplesmente não se vêem com dignidade ou valor suficiente para lutar pelos seus desejos. Não se vêem como sujeitos com direito de lutar pelos seus direitos ou desejos. Nesses casos, possibilitar que elas tenham uma experiência de recuperação da auto-estima, do senso de dignidade é fundamental.

As pessoas que assumem algum tipo de luta podem ser guiadas por diversos tipos de desejo. Eu quero mencionar aqui somente três. O primeiro seria o desejo de "subir na vida", o desejo de lutar para mudar a sua situação e conseguir participar da "festa do consumo" que o sistema oferece. A luta nesse caso não é pela transformação do sistema, mas um meio para realizar os desejos que o sistema apresenta como os mais desejáveis. É claro que muitas vezes essas próprias pessoas não têm consciência clara das suas motivações fundamentais (Freud nos mostrou que não temos consciência dos muitos desejos que nos movem) e podem usar os discursos de lutas populares para justificar o seu desejo de ascensão na escala de consumo. É um desejo ainda cativo do Império.

Um segundo tipo é o desejo de se vingar dos grupos dominantes do sistema que os exclui e domina. É o desejo de inverter a posição dos grupos nas relações de dominação e não o desejo de transformar o sistema de relações. Também nesses casos, poucos vão ter consciência ou assumir que o seu desejo é só de mudar a posição dos grupos. O que nos dá indicações para que possamos suspeitar desse tipo de motivação é a agressividade acentuada que nos remete ao desejo de vingança.

Um terceiro tipo de desejo é o desejo de vivermos em um sistema social diferente, novo, mais humano e justo. É o desejo que leva as pessoas a passarem de um conhecimento crítico para uma luta de transformação real e radical. Um desejo que rompe com o desejo do "mundo". Mas, como o pensamento crítico nos mostra, as relações de dominação não estão somente fora de nós, no sistema Imperial, mas também no interior das nossas lutas e também no interior de cada um de nós. Além disso, na medida em que vivemos nesta cultura capitalista de consumo que tudo invade, nós carregamos dentro de nós mesmos os desejos do Império. Por isso, a luta pela transformação não se dá somente contra o sistema, mas dentro de nós mesmos, para que as nossas lutas sejam realmente expressões de um desejo radical pelo novo.

A mudança radical do desejo e a luta constante que nasce a partir dela é o que a espiritualidade chama de conversão, que nos chama à missão. O pensar crítico e a espiritualidade que nos chama constantemente à "conversão e missão" devem constituir dois pilares das nossas lutas e, em particular, do processo permanente de "educação popular" ou "educação libertadora".

* Professor de pós-grad. em Ciências da Religião da Univ. Metodista de S. Paulo e autor de Sementes de esperança: a fé em um mundo em crise.

Autor de "Competência e sensibilidade solidária: educar para esperança", com Hugo Assmann.

Fonte: Adital - www.adital.com.br



21 de jan. de 2008

Aprendendo a administrar as emoções venenosas

Por Marco Aurélio Bilibio – Psicólogo e radialista

Por mais diferentes que sejamos, quer em termos de raça, credo, filiação política ou qualquer outra característica, todos compartilhamos de um ponto essencial: volta e meia precisamos administrar algum tipo de desconforto emocional. Seja este raiva, medo, inveja, ciúme, ansiedade, preocupação, etc. Para boa parte de nós não é fácil lidar com essas emoções.

Talvez o alto grau de violência de nossas sociedades esteja associado a essa dificuldade. Quanto maior a pressão social gerada por deficiências de nossos sistemas políticos e econômicos, mais se torna evidente o despreparo de nossa formação cultural para lidar com emoções potencialmente destrutivas. Para os que convivem em ambientes onde se pratica saudavelmente uma crença religiosa, o contato com seus ensinamentos e exemplos esclarecedores faz uma grande diferença. Mas as religiões têm perdido seu potencial orientador. Existem ambientes religiosos que, ao contrário, geram animosidade para com os que são de credos diferentes. Basta ver que em algumas das principais guerras da atualidade a questão religiosa está envolvida, diminuindo dramaticamente o seu papel educativo.

A questão da administração de emoções tóxicas é tema das psicoterapias. Na dimensão terapêutica sabe-se bastante sobre o tema. Recentemente, as neurociências ampliaram o entendimento da base fisiológica da experiência emocional. Interessantes linhas de pesquisa que utilizam exercícios mentais provenientes de tradições orientais atestam a vantagem de se ter estratégias eficientes de administração dos pensamentos e sentimentos para a geração de estados de bem-estar e felicidade. No entanto, a quantidade de dados existentes ainda não ocupa o espaço de importância que merece.

Um dia destes coloquei na sala de espera de meu consultório um texto que havia sido mandado por e-mail por um amigo. Causou tanto impacto que tive que fazer diversas cópias. Falava de uma experiência com um jovem monge budista em que sua meditação era monitorada pelos modernos aparelhos hoje utilizados para gerar imagens do cérebro em funcionamento. Descobriu-se que sua capacidade de ativar o lobo frontal esquerdo, região associada a estados de bem-estar, era de 700 a 1000% maior que a de uma pessoa normal. Comparado a todos os registros científicos já feitos até o momento, aquele monge pode ser considerado a pessoa mais feliz do mundo. Ele não precisava de nada para gerar estados de felicidade a não ser seus conhecimentos sobre a mente. Temos muito a aprender sobre paz e felicidade. E elas serão consideradas, no futuro, uma arte e uma ciência.

O aprendizado de habilidades emocionais necessita de dois campos de enorme importância: a família e a escola. Se nas famílias a questão a ser enfrentada são os aprendizados distorcidos e inabilidades adquiridas provenientes da própria cultura familiar, nas escolas o desafio é vencer o ranço racionalista que não considera a vida emocional com a devida importância, enquanto privilegia a formação intelectual. A ausência de uma abordagem do tema das habilidades emocionais, em bases científicas, nos currículos escolares, é expressão desse atraso. Hoje, sabe-se que a razão desenvolvida, se associada à atrofia das habilidades emocionais, é sinônimo de infelicidade e, freqüentemente, de crueldade.

Programas que focalizem o aprendizado das habilidades emocionais, ensinando e treinando crianças e adultos a lidar com a raiva, com o medo e com todas as outras emoções potencialmente destrutivas são extremamente necessários nesses tempos de violência. Canalizar positivamente essas emoções, aprendendo como resgatar a inteligência em meio à turbulência de uma forte emoção, ou aprendendo a dar uma expressão responsável ao que está sendo percebido gera relações mais nutritivas, com maior auto-estima e autoconfiança. Isso pode ajudar a fundamentar uma filosofia pessoal sobre felicidade alicerçada na prática do autoconhecimento, e abre caminho para explorar estados mais profundos de bem-estar.

Uma sociedade orientada para a felicidade, caso esse termo seja olhado com uma profundidade que integre ciência e filosofia, pode ser a mais maravilhosa das revoluções. Essa revolução tem sua raiz na maturidade emocional e começa na infância. Mas a premência de programas de desenvolvimento de habilidades emocionais para adultos é também enorme. Sua falta gera lares afetivamente insalubres e empresas que são fonte de tensão e ansiedade para seus profissionais. Sabe-se, hoje, que lideranças sem habilidades emocionais afetam a produtividade de empresas, além de produzir desnecessário desgaste pessoal de seus trabalhadores.

Aprender a não se intoxicar com emoções abre todo um entendimento sobre nós mesmos. Permite desfrutar da energia poderosa das emoções sem que nos tornemos escravos delas e ensina que há um imenso potencial de compreensão e vitalidade em cada situação conflitante que a vida traz.

Fonte: http://www.uniaoplanetaria.org.br/v2007/DetalhesArtigo.aspx?IDPublicacao=48

19 de jan. de 2008

Crianças e seu (des)lugar nas culturas

* Por Regina de Assis.

Participo de um grupo de profissionais dedicados à causa das crianças de 0 a 6 anos, que através da internet trocam informações, idéias e propostas, compartilhando, vez por outra das falas infantis. Uma delas bastante saborosa, dá conta do que uma criança comentou com sua mestra: "Professora, minha cabeça fala e canta comigo".

Esta inusitada descrição original, traz a todos nós a possibilidade de compreender os sentidos próprios que as crianças atribuem a si e às suas relações com a vida e o mundo.

No entanto, descrições, impressões, curiosidades, medos ou ansiedades e conquistas infantis só têm lugar quando há um outro - adulto, adolescente ou criança - disposto à escuta interessada, às relações afetivas e ao diálogo que constitui significados, provenientes das trocas entre sentidos muito particulares.

A criação do que Bakhtin (1985) chamava de gêneros discursivos, vitais ao relacionamento afetivo e ao entendimento de pais, responsáveis, professores e outras pessoas significativas com as crianças, é o que permite o reconhecimento das características específicas da infância, de seu tempo e de seu espaço na vida humana.

A memória gerada por estas trocas significativas, através dos signos, das palavras, constitui para as crianças a consciência de quem são na diversidade de situações vividas.

As diferentes estratégias exigidas pelos diálogos entre crianças e adultos transformam suas próprias relações culturais, influindo sobre suas maneiras de conviver e constituir suas identidades, seus conhecimentos e valores.

No entanto, neste mundo globalizado, cheio de contradições para a vida humana, ora provocando sua desumanização, devido à lógica selvagem da economia de mercado, ora unindo e colocando em rede habitantes das mais longínquas partes do planeta, observa-se que um fenômeno vai tomando novas formas: o do desaparecimento da infância e de sua falta de lugar nas culturas contemporâneas.

A obra do historiador Philippe Ariès (1978), que há cerca de 30 anos gerou muitas discussões ao analisar o "sentimento de infância", buscando definir a "descoberta da infância" por meio das características da família medieval e suas modificações, até chegar à família moderna, ainda é atual, porém provoca outras interpretações sobre o que vivemos agora, no início do século XX1 e do terceiro milênio da história humana.

Se Ariès mostrava naquela obra que as crianças, nos primórdios de sua "descoberta", ainda eram entendidas como adultos em miniatura ou então como bibelôs, nos contextos sociais, culturais e econômicos dos períodos históricos estudados, poderíamos dizer que – guardadas as proporções destas análises – na atualidade nossas crianças continuam, como antes, sendo um simulacro dos adultos e, muitas vezes, objetos de exibição.

Um curta-metragem brasileiro A invenção da infância, produzido no ano 2000, defende a tese de que, "ser criança não significa ter infância", mostrando um cenário contrastante, onde crianças brasileiras de diferentes regiões em certo sentido comprovam as descobertas de Ariès. As práticas sociais e econômicas do trabalho infantil, da violência contra as crianças, do erotismo e do consumo precoces exibem a imagem grotesca de seres humanos cuja infância é forçadamente encurtada ou levada ao desaparecimento.

Outro filme, intitulado Crianças Invisíveis, uma co-produção internacional em que várias histórias são apresentadas em diferentes contextos geográficos e culturais, também mostra o quanto ser criança na contemporaneidade é um fato que começa a rarear e tomar novos contornos.

Há vários outros exemplos propostos pelo cinema ou pela televisão, porém estes dois são bastante eloqüentes e contemporâneos ao polemizar se atualmente as crianças têm sua infância reconhecida e respeitada pelos adultos.

É oportuno considerar que, a partir da conquista da autonomia cidadã pelas mulheres, após ter seus direitos negados por séculos, houve uma transformação no núcleo familiar. Este deixa, gradualmente, seu aspecto vitoriano de família nuclear para assumir uma variedade crescente de alternativas, inclusive, a de famílias monoparentais e homossexuais.

O papel de provedor do pai passou por alterações, uma vez que as mães também começaram a contribuir para o sustento da família. Nesta perspectiva, uma outra circunstância que se universaliza - não só em nosso país, mas em todo o mundo - é a da ausência crescente da figura paterna permanente.

Há uma alternância de pais substitutos ou simplesmente as crianças pequenas passam a depender, quase que exclusivamente, de um universo feminino, tanto nas famílias, como nas creches e escolas de educação infantil, onde ainda são muito raros no Brasil, professores do gênero masculino.

A vida em família nos contextos urbanos brasileiros passou a exigir cada vez mais uma disciplina estrita, seja nas de renda baixa ou média, impondo longas horas de trabalho aos pais e responsáveis, que, ausentes dos lares, nem sempre dispõem de outros adultos para cuidar das crianças pequenas, educando-as e atendendo-as.

Neste cenário - que, em circunstâncias mais favoráveis, pode ter vários aspectos positivos, com o aumento das possibilidades nas quais as crianças se tornem mais autônomas, responsáveis e solidárias por terem que conviver em diferentes contextos sociais e culturais com outras crianças e adultos - surge a influência da mídia audiovisual, e mais recentemente, digital.

O poder de atração das imagens em movimento, dos efeitos sonoros e visuais e da suspensão da realidade fascina as crianças desde bem pequenas, convivendo assim com outras formas de afetos e satisfação, mesmo que virtual, de desejos e necessidades.

No contexto cultural gerado pela mídia audiovisual e digital, cada vez mais atraente pela interatividade que proporciona, os processos afetivos, sociais, cognitivo-lingüísticos e motores passam por novas alternativas de mobilização, que influem sobre a constituição das identidades infantis e de seus conhecimentos e valores.

A voracidade do mercado de mídia centra seu foco cada vez mais sobre as crianças pequenas, entendidas como consumidoras em potencial ou indutoras de consumo por parte dos adultos.

Em 2006, num relato apresentado por um profissional de mídia inglês, revelou-se que o público-alvo preferencial para a publicidade sobre roupas, brinquedos e alimentos era o das crianças de 3 anos de idade. Isto porque já falam, andam, demonstram suas preferências, são "engraçadinhas" e encantam aos adultos com suas manifestações .

No entanto, tais roupas, alimentos e brinquedos, em boa medida, antecipam o mundo adulto, em vez de estarem a serviço das características específicas e dos direitos destes seres humanos a um período em que estão constituindo suas identidades de gênero, de etnia e de pertencimento a um grupo social, produtor de cultura.

Resta muito a analisar eticamente sobre as possibilidades de um tempo e um lugar para a infância, como um direito das crianças de 0 a 6 anos e como uma conquista inalienável da espécie humana ao democratizar e civilizar as relações entre adultos e crianças.

É bom lembrar a fala original do início deste artigo, quando a criança declara que sua cabeça canta e fala com ela. Que estes cantares e falares sejam eticamente bem inspirados, ouvidos e considerados como direitos inalienáveis.


Bibliografia

- Ariès, Philippe
A história social da criança e da família, Rio de Janeiro, Zahar. Editores, 1978

- Bakhtin, Mikhail
Estética de la creación verbal, Madrid, Siglo XX1, 1985

- Smolka, Ana Luiza
Modos de inscrição das práticas cotidianas na memória coletiva e individual in A magia da linguagem, Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2001

- Souza, Solange Jobim
Subjetividade em questão, A infância como crítica da cultura,
(organizadora ) Rio de Janeiro, 7 Letras, 2000

- Vygotsky, Lev S.
A formação social da mente, São Paulo, Martins Fontes, 1984


*Regina de Assis
Presidente da MULTIRIO e coordenadora-geral do RIO MÍDIA


Artigo inicialmente publicado na Revista Pátio - novembro de 2007.

Fonte: http://www.multirio.rj.gov.br/portal/riomidia/rm_materia_conteudo.asp?idioma=1&idMenu=5&v_nome_area=Artigos&label=Artigos&v_id_conteudo=69950

18 de jan. de 2008

COMUNICAÇÃO E CULTURA DE PAZ

A maneira como nos expressamos revela nossos valores e crenças mais íntimos, até mesmo em detrimento da postura correta que tentamos demonstrar. Podemos observar que, apesar dos discursos freqüentes que ouvimos e fazemos em favor da paz, nosso acervo lingüístico costuma abrigar expressões que evidenciam a “cultura de guerra” instalada confortavelmente em nossas cabeças.

São freqüentes, na linguagem coloquial, expressões que demonstram nosso valor (consciente ou inconsciente) por ferir, subjugar e eliminar o outro. Para nos referirmos ao desejado sucesso de um empreendimento, usamos: “matar a pau”, “detonar”, “botar para quebrar”, “arrasar”, etc. Se uma pessoa é muito determinada, diz-se que é “guerreira”. Se algo tem grande aceitação ou afluência de pessoas, é comum ouvirmos dizer que “está bombando”. Isso sem mencionar os palavrões, piadas e brincadeiras de mau gosto, sempre carregados de preconceitos de raça, gênero, opção sexual, etc.

Poderíamos listar aqui uma série de exemplos que mostram como a agressividade e a combatividade estão infiltradas em nossos pensamentos, engendrando o que dizemos e fazemos. Porém, o mais importante é percebermos como esta dupla nociva delata nossa adesão aos anti-valores que impedem o desenvolvimento da nossa sociedade.


É evidente que palavras agressivas e desagradáveis geralmente ocasionam uma resposta equivalente das outras pessoas, em uma espécie de “efeito espelho” que acaba por voltar-se contra nós. Mesmo assim, temos grande dificuldade em corrigir nossa fala e a forma de pensar que a origina.

Uma campanha publicitária lançada por diversas organizações da sociedade civil reunidas no grupo Diálogos Contra o Racismo pergunta: “Onde você guarda seu racismo?”. Baseia-se no fato de que o racismo, apesar de tão fortemente negado no Brasil, se faz presente não só em agressões explícitas, mas também em atitudes sutis como comentários, piadas, insinuações, etc.

Tomando o exemplo da campanha citada, deveríamos perguntar-nos onde guardamos nossa agressividade, nosso valor pela competição, nosso apego à guerra.

Um artigo sobre comunicação não poderia deixar de citar a importância da mídia na difusão de uma linguagem pacífica. Infelizmente, com raras e louváveis exceções, o que vemos é a exaltação da violência. Porém, a comunicação é feita por pessoas e se elas não estão comprometidas com a paz em suas próprias vidas, os veículos de comunicação – que seguem as leis do mercado e abastecem os consumidores com o tipo de informação que lhes apraz – obviamente não serão os artífices da mudança. Como sempre, a transformação tem que começar no plano individual, porque é de consciência em consciência que se muda o todo.

Cristina Sales é Mestre em Bens Culturais e Projetos Socias pela FGV. Consultora de comunicação especializada em causas sociais, também á autora de histórias infantis que ressaltam os valores humanos.

16 de jan. de 2008

Dia Nacional Contra a Intolerância Religiosa

O Brasil e a tolerância religiosa

Marcelo Barros *


Na 2ª feira, 21 de janeiro, pela primeira vez, o povo brasileiro vive o "Dia nacional de combate à intolerância religiosa", decretado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo presidente da República no dia 27 de dezembro de 2007, através da lei n. 11.635. O decreto é muito conciso: "Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o - Fica instituído o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, a ser comemorado anualmente em todo o território nacional no dia 21 de janeiro. Art. 2o - A data fica incluída no Calendário Cívico da União para efeitos de comemoração oficial. Art. 3o - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação". Traz as assinaturas do presidente da República e do ministro da Cultura. Vale a pena aprofundar os motivos pelos quais esta medida é oportuna e quais os objetivos mais concretos que esta lei pode contribuir para alcançarmos.

É muito comum as pessoas dizerem que no Brasil, já vigora tolerância e até diálogo entre as confissões religiosas. De fato, o Brasil não vive a situação de certos países como a Índia, onde recentemente, no Natal de 2007, cristãos assassinaram um líder hindu fundamentalista e adeptos do hinduísmo queimaram três Igrejas cristãs, ameaçando de morte quem freqüentasse a missa do Natal. No Brasil, não existem guerras religiosas como ocorrem na Nigéria entre cristãos e muçulmanos, nem guerras sócio-econômicas nas quais a religião no lugar de contribuir para a paz, se torna pretexto de violência, como ocorre entre judeus e palestinos em Israel e, uma vez ou outra, entre católicos e ortodoxos no leste europeu. Por outro lado, mesmo em nosso Brasil, alguns programas de rádio e televisão se notabilizam por demonizar a religião dos outros e por falar de Deus como se este fosse um senhor truculento a ameaçar de condenação eterna a quem não seguir tal Igreja ou não obedecer ao pastor ou à pastora de plantão.

A escolha do dia 21 de janeiro para esta data de combate à intolerância religiosa não foi por acaso. No dia 21 de janeiro de 2000, no Rio de Janeiro, morreu a Mãe Gilda de Ogum. Ela teve um enfarte fulminante quando viu crentes que se consideram evangélicos invadirem e destruírem a sua casa de culto (Abassá de Ogum). Embora os meios de comunicação quase não publicam, ainda proliferam no Brasil, aqui e ali, alguns conflitos violentos entre membros de determinadas Igrejas e outras confissões religiosas. Em Campina Grande, PB, já há quase 20 anos, acontece um "Encontro da Nova Consciência" que reúne pessoas de várias tradições espirituais comprometidas com a paz. Há alguns anos, crentes de algumas confissões cristãs organizaram ao lado um encontro paralelo: "Encontro da Nova Consciência com Cristo" que não admite pessoas que não sejam de suas Igrejas. Estes fazem manifestações com som alto, justamente quando os religiosos das diversas tradições se unem para orar pela paz. No ano passado, crentes deste grupo fundamentalista invadiram a celebração ecumênica feita pelos outros religiosos para impedir que os Hare-krisna cantassem seus mantras e expulsar o demônio dos adeptos da Umbanda e do Candomblé. Eu e vários irmãos tivemos de atuar para impedir um confronto e para responder à revolta das pessoas agredidas que abriram um processo judicial contra os agressores.

Para fazer do Brasil um país no qual a pluralidade religiosa seja motivo de enriquecimento recíproco e não de intolerância, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República realizou uma cartilha e um vídeo sobre "Diversidade Religiosa e Direitos Humanos" que tem contribuído para criar um clima favorável ao respeito e à complementaridade mútua entre as diversas tradições culturais e religiosas. Agora, a iniciativa deste dia nacional de combate pacífico contra a intolerância religiosa pode contribuir para que cada corrente espiritual veja que a outra não lhe é concorrente, mas complementar. A diversidade cultural e religiosa é uma riqueza inspirada pelo próprio Espírito Divino e não só deve ser aceita ou assumida, como valorizada e incentivada através do diálogo que permite a cada tradição expressar sua peculiaridade própria e sua riqueza cultural.

Na linguagem corrente, tolerar uma coisa é suportá-la. Na convivência inter-cultural e inter-religiosa, tolerar não deveria bastar. Neste caso, o termo já denota a dificuldade que as religiões têm para admitir o direito da discordância e do dissenso. Na tradição cristã, os próprios evangelhos contam Jesus Cristo teve esta dificuldade com seus discípulos. Uma vez, a caminho de Jerusalém, ele quis passar pela Galiléia. Os habitantes daquelas aldeias galiléias não o quiseram receber pelo fato dele ser judeu. Ao saber disso, dois discípulos quiseram que Jesus castigasse aqueles infiéis fazendo descer sobre eles o fogo divino. Jesus os repreendeu dizendo: "Vocês não sabem de que espírito são animados" (Lc 9, 55). A um discípulo que queria proibir alguém de expulsar o mal, porque esta pessoa não pertencia ao grupo deles (discípulos), Jesus responde: "Não o proíbam. Quem não está contra nós, está do nosso lado" (Lc 9, 49- 50). Ele quis ensinar seus discípulos a descobrir Deus no diferente, como em um oficial romano, em uma mulher estrangeira e nos samaritanos hereges.

Certamente, vale para toda pessoa espiritual, em qualquer tradição ou corrente religiosa, a palavra que, há alguns anos, os bispos católicos da Ásia escreveram: "Deus é amor e se dá de mil maneiras à humanidade. Não nos pede permissão para se revelar às diversas comunidades e grupos humanos. Reconhecer estas múltiplas formas como seu amor se revela é um modo importante de honrá-lo e corresponder ao seu amor".


* Monge beneditino, teólogo e escritor. Tem 30 livros publicados.



Fonte: www.adital.org.br