2 de fev. de 2008

O Império, o pensar crítico e o desejo

Jung Mo Sung *

No artigo anterior (Há alternativas? O Império e o pensar crítico), eu defendi a tese de que o desenvolvimento e a "difusão" da capacidade de um pensamento crítico e complexo é uma tarefa fundamental na luta contra o Império que se apresenta como "sem alternativa". No fundo, esse é o trabalho de todos e todas que de alguma forma estão envolvidas com processo de "educação libertadora".

A capacidade de pensar criticamente é um instrumento necessário para as lutas populares, mas é suficiente? Não. Há uma distância ou um abismo a ser transposto entre o conhecimento e a ação transformadora. Marx já tinha levantado esta questão nas suas famosas teses contra Feuerbach, especialmente quando ele disse que "os filósofos interpretaram o mundo, mas o que é preciso é transformá-lo". Ou como disse Kojéve, o conhecimento mantém o ser humano em quietude passiva, o que o torna inquieto e o leva à ação é o desejo. Muitas das nossas experiências de educação popular ou cursos de conscientização sobre a realidade nos mostram que o conhecimento por si não move as pessoas a assumirem a luta pela transformação. É preciso despertar o desejo pela mudança.

Este tema do desejo é fundamental também para compreendermos a principal forma de dominação do atual Império global. Os impérios anteriores se caracterizavam pela expansão e domínio de um país poderoso (por ex., Grã-Bretanha) sobre outros povos através da força militar. O poder militar era fundamental na conquista e na manutenção do poder imperial. O Império atual se caracteriza, não pela expansão do poder de um único país, mas pela expansão de um sistema econômico, o capitalista, sobre todas as partes do mundo e todos os aspectos da vida. A lógica do mercado e o interesse absoluto da acumulação do capital se impõe sobre todos aspectos e níveis da vida. É claro que o poderio militar dos Estados Unidos é um fator importante na manutenção da ordem imperial global, mas não é o único e nem o mais importante. Um dos instrumentos mais importantes dessa dominação é a sedução. Através do domínio cultural, o sistema capitalista está conseguindo cooptar os desejos das multidões de todos os povos, desde os pobres de Bangladesh que se orgulham e ficam deslumbrados diante dos novos e luxuosos Shopping Centers, passando por chineses (ainda comunistas?) que desejam o que desejam os ricos dos países ocidentais e por coisas semelhantes na América Latina e na África.

Quando queremos passar do conhecimento passivo para uma inquietação que leva à ação transformadora, o tema do desejo é essencial. Há pessoas que não conseguem sair do imobilismo, mesmo após a "conscientização", porque simplesmente não se vêem com dignidade ou valor suficiente para lutar pelos seus desejos. Não se vêem como sujeitos com direito de lutar pelos seus direitos ou desejos. Nesses casos, possibilitar que elas tenham uma experiência de recuperação da auto-estima, do senso de dignidade é fundamental.

As pessoas que assumem algum tipo de luta podem ser guiadas por diversos tipos de desejo. Eu quero mencionar aqui somente três. O primeiro seria o desejo de "subir na vida", o desejo de lutar para mudar a sua situação e conseguir participar da "festa do consumo" que o sistema oferece. A luta nesse caso não é pela transformação do sistema, mas um meio para realizar os desejos que o sistema apresenta como os mais desejáveis. É claro que muitas vezes essas próprias pessoas não têm consciência clara das suas motivações fundamentais (Freud nos mostrou que não temos consciência dos muitos desejos que nos movem) e podem usar os discursos de lutas populares para justificar o seu desejo de ascensão na escala de consumo. É um desejo ainda cativo do Império.

Um segundo tipo é o desejo de se vingar dos grupos dominantes do sistema que os exclui e domina. É o desejo de inverter a posição dos grupos nas relações de dominação e não o desejo de transformar o sistema de relações. Também nesses casos, poucos vão ter consciência ou assumir que o seu desejo é só de mudar a posição dos grupos. O que nos dá indicações para que possamos suspeitar desse tipo de motivação é a agressividade acentuada que nos remete ao desejo de vingança.

Um terceiro tipo de desejo é o desejo de vivermos em um sistema social diferente, novo, mais humano e justo. É o desejo que leva as pessoas a passarem de um conhecimento crítico para uma luta de transformação real e radical. Um desejo que rompe com o desejo do "mundo". Mas, como o pensamento crítico nos mostra, as relações de dominação não estão somente fora de nós, no sistema Imperial, mas também no interior das nossas lutas e também no interior de cada um de nós. Além disso, na medida em que vivemos nesta cultura capitalista de consumo que tudo invade, nós carregamos dentro de nós mesmos os desejos do Império. Por isso, a luta pela transformação não se dá somente contra o sistema, mas dentro de nós mesmos, para que as nossas lutas sejam realmente expressões de um desejo radical pelo novo.

A mudança radical do desejo e a luta constante que nasce a partir dela é o que a espiritualidade chama de conversão, que nos chama à missão. O pensar crítico e a espiritualidade que nos chama constantemente à "conversão e missão" devem constituir dois pilares das nossas lutas e, em particular, do processo permanente de "educação popular" ou "educação libertadora".

* Professor de pós-grad. em Ciências da Religião da Univ. Metodista de S. Paulo e autor de Sementes de esperança: a fé em um mundo em crise.

Autor de "Competência e sensibilidade solidária: educar para esperança", com Hugo Assmann.

Fonte: Adital - www.adital.com.br