21 de jan. de 2008

Aprendendo a administrar as emoções venenosas

Por Marco Aurélio Bilibio – Psicólogo e radialista

Por mais diferentes que sejamos, quer em termos de raça, credo, filiação política ou qualquer outra característica, todos compartilhamos de um ponto essencial: volta e meia precisamos administrar algum tipo de desconforto emocional. Seja este raiva, medo, inveja, ciúme, ansiedade, preocupação, etc. Para boa parte de nós não é fácil lidar com essas emoções.

Talvez o alto grau de violência de nossas sociedades esteja associado a essa dificuldade. Quanto maior a pressão social gerada por deficiências de nossos sistemas políticos e econômicos, mais se torna evidente o despreparo de nossa formação cultural para lidar com emoções potencialmente destrutivas. Para os que convivem em ambientes onde se pratica saudavelmente uma crença religiosa, o contato com seus ensinamentos e exemplos esclarecedores faz uma grande diferença. Mas as religiões têm perdido seu potencial orientador. Existem ambientes religiosos que, ao contrário, geram animosidade para com os que são de credos diferentes. Basta ver que em algumas das principais guerras da atualidade a questão religiosa está envolvida, diminuindo dramaticamente o seu papel educativo.

A questão da administração de emoções tóxicas é tema das psicoterapias. Na dimensão terapêutica sabe-se bastante sobre o tema. Recentemente, as neurociências ampliaram o entendimento da base fisiológica da experiência emocional. Interessantes linhas de pesquisa que utilizam exercícios mentais provenientes de tradições orientais atestam a vantagem de se ter estratégias eficientes de administração dos pensamentos e sentimentos para a geração de estados de bem-estar e felicidade. No entanto, a quantidade de dados existentes ainda não ocupa o espaço de importância que merece.

Um dia destes coloquei na sala de espera de meu consultório um texto que havia sido mandado por e-mail por um amigo. Causou tanto impacto que tive que fazer diversas cópias. Falava de uma experiência com um jovem monge budista em que sua meditação era monitorada pelos modernos aparelhos hoje utilizados para gerar imagens do cérebro em funcionamento. Descobriu-se que sua capacidade de ativar o lobo frontal esquerdo, região associada a estados de bem-estar, era de 700 a 1000% maior que a de uma pessoa normal. Comparado a todos os registros científicos já feitos até o momento, aquele monge pode ser considerado a pessoa mais feliz do mundo. Ele não precisava de nada para gerar estados de felicidade a não ser seus conhecimentos sobre a mente. Temos muito a aprender sobre paz e felicidade. E elas serão consideradas, no futuro, uma arte e uma ciência.

O aprendizado de habilidades emocionais necessita de dois campos de enorme importância: a família e a escola. Se nas famílias a questão a ser enfrentada são os aprendizados distorcidos e inabilidades adquiridas provenientes da própria cultura familiar, nas escolas o desafio é vencer o ranço racionalista que não considera a vida emocional com a devida importância, enquanto privilegia a formação intelectual. A ausência de uma abordagem do tema das habilidades emocionais, em bases científicas, nos currículos escolares, é expressão desse atraso. Hoje, sabe-se que a razão desenvolvida, se associada à atrofia das habilidades emocionais, é sinônimo de infelicidade e, freqüentemente, de crueldade.

Programas que focalizem o aprendizado das habilidades emocionais, ensinando e treinando crianças e adultos a lidar com a raiva, com o medo e com todas as outras emoções potencialmente destrutivas são extremamente necessários nesses tempos de violência. Canalizar positivamente essas emoções, aprendendo como resgatar a inteligência em meio à turbulência de uma forte emoção, ou aprendendo a dar uma expressão responsável ao que está sendo percebido gera relações mais nutritivas, com maior auto-estima e autoconfiança. Isso pode ajudar a fundamentar uma filosofia pessoal sobre felicidade alicerçada na prática do autoconhecimento, e abre caminho para explorar estados mais profundos de bem-estar.

Uma sociedade orientada para a felicidade, caso esse termo seja olhado com uma profundidade que integre ciência e filosofia, pode ser a mais maravilhosa das revoluções. Essa revolução tem sua raiz na maturidade emocional e começa na infância. Mas a premência de programas de desenvolvimento de habilidades emocionais para adultos é também enorme. Sua falta gera lares afetivamente insalubres e empresas que são fonte de tensão e ansiedade para seus profissionais. Sabe-se, hoje, que lideranças sem habilidades emocionais afetam a produtividade de empresas, além de produzir desnecessário desgaste pessoal de seus trabalhadores.

Aprender a não se intoxicar com emoções abre todo um entendimento sobre nós mesmos. Permite desfrutar da energia poderosa das emoções sem que nos tornemos escravos delas e ensina que há um imenso potencial de compreensão e vitalidade em cada situação conflitante que a vida traz.

Fonte: http://www.uniaoplanetaria.org.br/v2007/DetalhesArtigo.aspx?IDPublicacao=48

19 de jan. de 2008

Crianças e seu (des)lugar nas culturas

* Por Regina de Assis.

Participo de um grupo de profissionais dedicados à causa das crianças de 0 a 6 anos, que através da internet trocam informações, idéias e propostas, compartilhando, vez por outra das falas infantis. Uma delas bastante saborosa, dá conta do que uma criança comentou com sua mestra: "Professora, minha cabeça fala e canta comigo".

Esta inusitada descrição original, traz a todos nós a possibilidade de compreender os sentidos próprios que as crianças atribuem a si e às suas relações com a vida e o mundo.

No entanto, descrições, impressões, curiosidades, medos ou ansiedades e conquistas infantis só têm lugar quando há um outro - adulto, adolescente ou criança - disposto à escuta interessada, às relações afetivas e ao diálogo que constitui significados, provenientes das trocas entre sentidos muito particulares.

A criação do que Bakhtin (1985) chamava de gêneros discursivos, vitais ao relacionamento afetivo e ao entendimento de pais, responsáveis, professores e outras pessoas significativas com as crianças, é o que permite o reconhecimento das características específicas da infância, de seu tempo e de seu espaço na vida humana.

A memória gerada por estas trocas significativas, através dos signos, das palavras, constitui para as crianças a consciência de quem são na diversidade de situações vividas.

As diferentes estratégias exigidas pelos diálogos entre crianças e adultos transformam suas próprias relações culturais, influindo sobre suas maneiras de conviver e constituir suas identidades, seus conhecimentos e valores.

No entanto, neste mundo globalizado, cheio de contradições para a vida humana, ora provocando sua desumanização, devido à lógica selvagem da economia de mercado, ora unindo e colocando em rede habitantes das mais longínquas partes do planeta, observa-se que um fenômeno vai tomando novas formas: o do desaparecimento da infância e de sua falta de lugar nas culturas contemporâneas.

A obra do historiador Philippe Ariès (1978), que há cerca de 30 anos gerou muitas discussões ao analisar o "sentimento de infância", buscando definir a "descoberta da infância" por meio das características da família medieval e suas modificações, até chegar à família moderna, ainda é atual, porém provoca outras interpretações sobre o que vivemos agora, no início do século XX1 e do terceiro milênio da história humana.

Se Ariès mostrava naquela obra que as crianças, nos primórdios de sua "descoberta", ainda eram entendidas como adultos em miniatura ou então como bibelôs, nos contextos sociais, culturais e econômicos dos períodos históricos estudados, poderíamos dizer que – guardadas as proporções destas análises – na atualidade nossas crianças continuam, como antes, sendo um simulacro dos adultos e, muitas vezes, objetos de exibição.

Um curta-metragem brasileiro A invenção da infância, produzido no ano 2000, defende a tese de que, "ser criança não significa ter infância", mostrando um cenário contrastante, onde crianças brasileiras de diferentes regiões em certo sentido comprovam as descobertas de Ariès. As práticas sociais e econômicas do trabalho infantil, da violência contra as crianças, do erotismo e do consumo precoces exibem a imagem grotesca de seres humanos cuja infância é forçadamente encurtada ou levada ao desaparecimento.

Outro filme, intitulado Crianças Invisíveis, uma co-produção internacional em que várias histórias são apresentadas em diferentes contextos geográficos e culturais, também mostra o quanto ser criança na contemporaneidade é um fato que começa a rarear e tomar novos contornos.

Há vários outros exemplos propostos pelo cinema ou pela televisão, porém estes dois são bastante eloqüentes e contemporâneos ao polemizar se atualmente as crianças têm sua infância reconhecida e respeitada pelos adultos.

É oportuno considerar que, a partir da conquista da autonomia cidadã pelas mulheres, após ter seus direitos negados por séculos, houve uma transformação no núcleo familiar. Este deixa, gradualmente, seu aspecto vitoriano de família nuclear para assumir uma variedade crescente de alternativas, inclusive, a de famílias monoparentais e homossexuais.

O papel de provedor do pai passou por alterações, uma vez que as mães também começaram a contribuir para o sustento da família. Nesta perspectiva, uma outra circunstância que se universaliza - não só em nosso país, mas em todo o mundo - é a da ausência crescente da figura paterna permanente.

Há uma alternância de pais substitutos ou simplesmente as crianças pequenas passam a depender, quase que exclusivamente, de um universo feminino, tanto nas famílias, como nas creches e escolas de educação infantil, onde ainda são muito raros no Brasil, professores do gênero masculino.

A vida em família nos contextos urbanos brasileiros passou a exigir cada vez mais uma disciplina estrita, seja nas de renda baixa ou média, impondo longas horas de trabalho aos pais e responsáveis, que, ausentes dos lares, nem sempre dispõem de outros adultos para cuidar das crianças pequenas, educando-as e atendendo-as.

Neste cenário - que, em circunstâncias mais favoráveis, pode ter vários aspectos positivos, com o aumento das possibilidades nas quais as crianças se tornem mais autônomas, responsáveis e solidárias por terem que conviver em diferentes contextos sociais e culturais com outras crianças e adultos - surge a influência da mídia audiovisual, e mais recentemente, digital.

O poder de atração das imagens em movimento, dos efeitos sonoros e visuais e da suspensão da realidade fascina as crianças desde bem pequenas, convivendo assim com outras formas de afetos e satisfação, mesmo que virtual, de desejos e necessidades.

No contexto cultural gerado pela mídia audiovisual e digital, cada vez mais atraente pela interatividade que proporciona, os processos afetivos, sociais, cognitivo-lingüísticos e motores passam por novas alternativas de mobilização, que influem sobre a constituição das identidades infantis e de seus conhecimentos e valores.

A voracidade do mercado de mídia centra seu foco cada vez mais sobre as crianças pequenas, entendidas como consumidoras em potencial ou indutoras de consumo por parte dos adultos.

Em 2006, num relato apresentado por um profissional de mídia inglês, revelou-se que o público-alvo preferencial para a publicidade sobre roupas, brinquedos e alimentos era o das crianças de 3 anos de idade. Isto porque já falam, andam, demonstram suas preferências, são "engraçadinhas" e encantam aos adultos com suas manifestações .

No entanto, tais roupas, alimentos e brinquedos, em boa medida, antecipam o mundo adulto, em vez de estarem a serviço das características específicas e dos direitos destes seres humanos a um período em que estão constituindo suas identidades de gênero, de etnia e de pertencimento a um grupo social, produtor de cultura.

Resta muito a analisar eticamente sobre as possibilidades de um tempo e um lugar para a infância, como um direito das crianças de 0 a 6 anos e como uma conquista inalienável da espécie humana ao democratizar e civilizar as relações entre adultos e crianças.

É bom lembrar a fala original do início deste artigo, quando a criança declara que sua cabeça canta e fala com ela. Que estes cantares e falares sejam eticamente bem inspirados, ouvidos e considerados como direitos inalienáveis.


Bibliografia

- Ariès, Philippe
A história social da criança e da família, Rio de Janeiro, Zahar. Editores, 1978

- Bakhtin, Mikhail
Estética de la creación verbal, Madrid, Siglo XX1, 1985

- Smolka, Ana Luiza
Modos de inscrição das práticas cotidianas na memória coletiva e individual in A magia da linguagem, Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2001

- Souza, Solange Jobim
Subjetividade em questão, A infância como crítica da cultura,
(organizadora ) Rio de Janeiro, 7 Letras, 2000

- Vygotsky, Lev S.
A formação social da mente, São Paulo, Martins Fontes, 1984


*Regina de Assis
Presidente da MULTIRIO e coordenadora-geral do RIO MÍDIA


Artigo inicialmente publicado na Revista Pátio - novembro de 2007.

Fonte: http://www.multirio.rj.gov.br/portal/riomidia/rm_materia_conteudo.asp?idioma=1&idMenu=5&v_nome_area=Artigos&label=Artigos&v_id_conteudo=69950

18 de jan. de 2008

COMUNICAÇÃO E CULTURA DE PAZ

A maneira como nos expressamos revela nossos valores e crenças mais íntimos, até mesmo em detrimento da postura correta que tentamos demonstrar. Podemos observar que, apesar dos discursos freqüentes que ouvimos e fazemos em favor da paz, nosso acervo lingüístico costuma abrigar expressões que evidenciam a “cultura de guerra” instalada confortavelmente em nossas cabeças.

São freqüentes, na linguagem coloquial, expressões que demonstram nosso valor (consciente ou inconsciente) por ferir, subjugar e eliminar o outro. Para nos referirmos ao desejado sucesso de um empreendimento, usamos: “matar a pau”, “detonar”, “botar para quebrar”, “arrasar”, etc. Se uma pessoa é muito determinada, diz-se que é “guerreira”. Se algo tem grande aceitação ou afluência de pessoas, é comum ouvirmos dizer que “está bombando”. Isso sem mencionar os palavrões, piadas e brincadeiras de mau gosto, sempre carregados de preconceitos de raça, gênero, opção sexual, etc.

Poderíamos listar aqui uma série de exemplos que mostram como a agressividade e a combatividade estão infiltradas em nossos pensamentos, engendrando o que dizemos e fazemos. Porém, o mais importante é percebermos como esta dupla nociva delata nossa adesão aos anti-valores que impedem o desenvolvimento da nossa sociedade.


É evidente que palavras agressivas e desagradáveis geralmente ocasionam uma resposta equivalente das outras pessoas, em uma espécie de “efeito espelho” que acaba por voltar-se contra nós. Mesmo assim, temos grande dificuldade em corrigir nossa fala e a forma de pensar que a origina.

Uma campanha publicitária lançada por diversas organizações da sociedade civil reunidas no grupo Diálogos Contra o Racismo pergunta: “Onde você guarda seu racismo?”. Baseia-se no fato de que o racismo, apesar de tão fortemente negado no Brasil, se faz presente não só em agressões explícitas, mas também em atitudes sutis como comentários, piadas, insinuações, etc.

Tomando o exemplo da campanha citada, deveríamos perguntar-nos onde guardamos nossa agressividade, nosso valor pela competição, nosso apego à guerra.

Um artigo sobre comunicação não poderia deixar de citar a importância da mídia na difusão de uma linguagem pacífica. Infelizmente, com raras e louváveis exceções, o que vemos é a exaltação da violência. Porém, a comunicação é feita por pessoas e se elas não estão comprometidas com a paz em suas próprias vidas, os veículos de comunicação – que seguem as leis do mercado e abastecem os consumidores com o tipo de informação que lhes apraz – obviamente não serão os artífices da mudança. Como sempre, a transformação tem que começar no plano individual, porque é de consciência em consciência que se muda o todo.

Cristina Sales é Mestre em Bens Culturais e Projetos Socias pela FGV. Consultora de comunicação especializada em causas sociais, também á autora de histórias infantis que ressaltam os valores humanos.

16 de jan. de 2008

Dia Nacional Contra a Intolerância Religiosa

O Brasil e a tolerância religiosa

Marcelo Barros *


Na 2ª feira, 21 de janeiro, pela primeira vez, o povo brasileiro vive o "Dia nacional de combate à intolerância religiosa", decretado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo presidente da República no dia 27 de dezembro de 2007, através da lei n. 11.635. O decreto é muito conciso: "Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o - Fica instituído o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, a ser comemorado anualmente em todo o território nacional no dia 21 de janeiro. Art. 2o - A data fica incluída no Calendário Cívico da União para efeitos de comemoração oficial. Art. 3o - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação". Traz as assinaturas do presidente da República e do ministro da Cultura. Vale a pena aprofundar os motivos pelos quais esta medida é oportuna e quais os objetivos mais concretos que esta lei pode contribuir para alcançarmos.

É muito comum as pessoas dizerem que no Brasil, já vigora tolerância e até diálogo entre as confissões religiosas. De fato, o Brasil não vive a situação de certos países como a Índia, onde recentemente, no Natal de 2007, cristãos assassinaram um líder hindu fundamentalista e adeptos do hinduísmo queimaram três Igrejas cristãs, ameaçando de morte quem freqüentasse a missa do Natal. No Brasil, não existem guerras religiosas como ocorrem na Nigéria entre cristãos e muçulmanos, nem guerras sócio-econômicas nas quais a religião no lugar de contribuir para a paz, se torna pretexto de violência, como ocorre entre judeus e palestinos em Israel e, uma vez ou outra, entre católicos e ortodoxos no leste europeu. Por outro lado, mesmo em nosso Brasil, alguns programas de rádio e televisão se notabilizam por demonizar a religião dos outros e por falar de Deus como se este fosse um senhor truculento a ameaçar de condenação eterna a quem não seguir tal Igreja ou não obedecer ao pastor ou à pastora de plantão.

A escolha do dia 21 de janeiro para esta data de combate à intolerância religiosa não foi por acaso. No dia 21 de janeiro de 2000, no Rio de Janeiro, morreu a Mãe Gilda de Ogum. Ela teve um enfarte fulminante quando viu crentes que se consideram evangélicos invadirem e destruírem a sua casa de culto (Abassá de Ogum). Embora os meios de comunicação quase não publicam, ainda proliferam no Brasil, aqui e ali, alguns conflitos violentos entre membros de determinadas Igrejas e outras confissões religiosas. Em Campina Grande, PB, já há quase 20 anos, acontece um "Encontro da Nova Consciência" que reúne pessoas de várias tradições espirituais comprometidas com a paz. Há alguns anos, crentes de algumas confissões cristãs organizaram ao lado um encontro paralelo: "Encontro da Nova Consciência com Cristo" que não admite pessoas que não sejam de suas Igrejas. Estes fazem manifestações com som alto, justamente quando os religiosos das diversas tradições se unem para orar pela paz. No ano passado, crentes deste grupo fundamentalista invadiram a celebração ecumênica feita pelos outros religiosos para impedir que os Hare-krisna cantassem seus mantras e expulsar o demônio dos adeptos da Umbanda e do Candomblé. Eu e vários irmãos tivemos de atuar para impedir um confronto e para responder à revolta das pessoas agredidas que abriram um processo judicial contra os agressores.

Para fazer do Brasil um país no qual a pluralidade religiosa seja motivo de enriquecimento recíproco e não de intolerância, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República realizou uma cartilha e um vídeo sobre "Diversidade Religiosa e Direitos Humanos" que tem contribuído para criar um clima favorável ao respeito e à complementaridade mútua entre as diversas tradições culturais e religiosas. Agora, a iniciativa deste dia nacional de combate pacífico contra a intolerância religiosa pode contribuir para que cada corrente espiritual veja que a outra não lhe é concorrente, mas complementar. A diversidade cultural e religiosa é uma riqueza inspirada pelo próprio Espírito Divino e não só deve ser aceita ou assumida, como valorizada e incentivada através do diálogo que permite a cada tradição expressar sua peculiaridade própria e sua riqueza cultural.

Na linguagem corrente, tolerar uma coisa é suportá-la. Na convivência inter-cultural e inter-religiosa, tolerar não deveria bastar. Neste caso, o termo já denota a dificuldade que as religiões têm para admitir o direito da discordância e do dissenso. Na tradição cristã, os próprios evangelhos contam Jesus Cristo teve esta dificuldade com seus discípulos. Uma vez, a caminho de Jerusalém, ele quis passar pela Galiléia. Os habitantes daquelas aldeias galiléias não o quiseram receber pelo fato dele ser judeu. Ao saber disso, dois discípulos quiseram que Jesus castigasse aqueles infiéis fazendo descer sobre eles o fogo divino. Jesus os repreendeu dizendo: "Vocês não sabem de que espírito são animados" (Lc 9, 55). A um discípulo que queria proibir alguém de expulsar o mal, porque esta pessoa não pertencia ao grupo deles (discípulos), Jesus responde: "Não o proíbam. Quem não está contra nós, está do nosso lado" (Lc 9, 49- 50). Ele quis ensinar seus discípulos a descobrir Deus no diferente, como em um oficial romano, em uma mulher estrangeira e nos samaritanos hereges.

Certamente, vale para toda pessoa espiritual, em qualquer tradição ou corrente religiosa, a palavra que, há alguns anos, os bispos católicos da Ásia escreveram: "Deus é amor e se dá de mil maneiras à humanidade. Não nos pede permissão para se revelar às diversas comunidades e grupos humanos. Reconhecer estas múltiplas formas como seu amor se revela é um modo importante de honrá-lo e corresponder ao seu amor".


* Monge beneditino, teólogo e escritor. Tem 30 livros publicados.



Fonte: www.adital.org.br